O ser dissociado
Natalia fazia a prova de estatística avançada na faculdade, quando um dos alunos, irritado e frustrado, começou a discutir com o professor. Vozes se levantaram e os ânimos estavam acirrados. Era a última coisa da qual Natalia se lembrava. Agora, a jovem se encontrava na frente de uma boate, aguardando sua vez de entrar. Não reconheceu suas roupas. Olhando em seu celular, percebeu que haviam se passado dois dias desde a prova da faculdade. O que tinha acontecido naquele meio tempo? Por que não se lembrava de nada?
Natalia detestava boates e músicas barulhentas. E aquelas roupas, onde as arrumara? Não era seu estilo de se vestir. A jovem saiu rapidamente da fila e voltou para casa atordoada. Não era a primeira vez que sofria um apagão daqueles. Era como se o tempo fugisse dela e ela vivesse adormecida. Sabia que precisava de ajuda, mas como explicar o seu problema se nem ela mesma compreendia?
Natalia sofre do Transtorno Dissociativo de Identidade que é caracterizado pela presença de dois ou mais estados distintos de personalidade, com episódios de amnésia e alterações do senso de identidade própria.
Apesar de muito difundido nos filmes, apenas uma minoria apresenta alternância observável de identidade. Quando estes estados alternados são observados diretamente, o transtorno pode ser identificado por dois conjuntos de sintomas:
- Descontinuidades que podem afetar qualquer aspecto do funcionamento do indivíduo, que pode sentir seu corpo diferente e relatar comportamentos que não lhe são familiares;
- Amnésia dissociativa, com lacunas na memória de eventos remotos, lapsos na memória, descobertas de ações e tarefas cotidianas que ele não lembra ter feito, fugas dissociativas, como por exemplo, encontrar-se em algum lugar e não se lembrar de como chegou lá.
Muitas vezes, o indivíduo relata que se sente “possuído”, como se outra pessoa agisse e falasse em seu lugar.
A personalidade dissociativa apresenta-se. Diferentes personalidades assumem recorrentemente o controle do corpo com episódios de amnésia. Pode haver, também, despersonalização, confusão e alteração de identidade, regressão espontânea de idade, perda ou diminuição da sensibilidade e até mesmo pensamentos suicidas.
Cada personalidade é completa, com suas próprias memórias, comportamento e gostos, de forma elaborada e complexa. Pode haver, inclusive, personalidades do sexo oposto ao indivíduo central.
Alguns indivíduos com este transtorno podem apresentar personalidades com características físicas, conhecimentos, habilidades, memórias e sentimentos distintos. Algumas das personalidades podem se apresentar doentes, violentas ou perversas.
A amnésia e o medo da loucura são fatores comuns em tais pessoas.
Este transtorno pode ter como comorbidade a depressão, ansiedade e abuso de substâncias.
Por que este transtorno ocorre?
O Transtorno Dissociativo de Identidade está normalmente associado a experiências devastadoras, eventos traumáticos ou abusos, ocorridos na infância, podendo se manifestar em qualquer idade. Tais traumas são de natureza psíquica, emocional, física ou sexual tendo causado impactos significativos e sido esquecidos pelo indivíduo.
A teoria psicodinâmica sugere que este transtorno resulta de tentativas de dissociação de eventos estressantes, reprimindo de sua consciência toda a memória da experiência desagradável e ameaçadora. O estresse emocional pode ser aliviado pela repressão do afeto condicionado ao trauma original.
Os indivíduos não nascem com um senso de identidade unificado. Ele se desenvolve a partir de muitas fontes de experiências. Assim, em crianças oprimidas, o desenvolvimento pode ser obstruído, fragmentando as partes que constituiriam a estrutura do self ou personalidade.
A taxa de mulheres com este distúrbio é maior do que dos homens. No entanto, os indivíduos do sexo masculino costumam negar o transtorno e histórias de trauma, baixando esta taxa erroneamente.
Enquanto as mulheres apresentam mais amnésias, fugas e automutilação, os homens exibem comportamentos mais violentos, com agressões físicas ou sexuais.
Mias de 70% dos pacientes com o transtorno apresentam ao menos um episódio de tentativa de suicídio, ainda que a personalidade principal não se recorde.
Há tratamento?
A boa notícia é que há tratamento e, se apropriado, os indivíduos com Transtorno Dissociativo de Identidade podem apresentar melhora acentuada no funcionamento profissional e pessoal, ainda que algumas pessoas permaneçam com algum comprometimento na maioria das atividades de vida.
O tratamento de apoio prolongado pode aumentar lentamente a capacidade destes indivíduos de controlar os sintomas e diminuir cuidados de saúde como, por exemplo, internações.
É um transtorno assombroso, caso de diversos estudos na literatura e prova de que somos excepcionais, mesmo quando estamos doentes.